Este post é resultado das minhas reflexões pós balaio01.
Raysner Figueira, um dos meus brilhantes ex-alunos do Istituto Europeo di Design (IED-SP) e atual shape designer da Audi, participou da primeira edição do balaio, que aconteceu em 14 de abril de 2020. O tema do balaio foi “o futuro da mobilidade!?”, questão no mínimo provocadora para o momento “imóvel” (será mesmo?) que estamos vivendo. A discussão foi muito produtiva, mas quero me ater aqui às duas palavras – e imagens – que Raysner trouxe para o debate: desejo e funcionalidade.
Desejo, segundo o Michaelis, é um anseio ou carência consciente; querer, vontade, anseio veemente de alcançar determinado objetivo, aquilo que se procura alcançar quando se faz alguma coisa. Também tem a ver com instinto que leva o ser humano a tentar obter prazer sexual. Entendo que desejo é uma emoção que nos toma, uma vontade de conquistar algo e/ou de viver uma determinada experiência com outrem. Já funcionalidade, segundo o Michaelis, é algo concebido ou desenvolvido tendo em vista a utilização prática, prescindindo, portanto, da ornamentação. Parece-me que a funcionalidade é racional, lógica, cartesiana. Não há nada de emoção na funcionalidade, a sua vontade não reside na experiência mas sim na realização de determinada operação.
Raysner apresentou duas imagens para caracterizar o desejo e a funcionalidade. Enquanto o desejo foi representado por um Porsche 911 – o icônico modelo da marca germânica -, a funcionalidade foi demonstrada por outra marca alemã: a Braun, cujo diretor de design foi o mítico Dieter Rams, defensor do bom design e do “less is more”. Enquanto a Porsche 911 figura entre os esportivos mais desejados do mundo, os rádios, barbeadores, cafeteiras, mixers, secadores de cabelo – entre diversos outros eletrodomésticos e eletroportáteis da Braun – eram reconhecidos por sua excelente performance. Ao primeiro olhar, podemos cair no engano de que o conceito de desejo é oposto à funcionalidade, mas sob a minha perspectiva o desejo encontra a funcionalidade quando ambos geram sentido.
Raysner apresentou uma terceira imagem extraída do documentário de Gary Hustwit sobre Dieter Rams: o mítico designer ícone do funcionalismo ao lado de sua Porsche 911. Nessa imagem encontramos os símbolos de desejo e funcionalidade de mãos dadas. É curioso – e talvez até escreva sobre isso em um outro artigo – como o trabalho de Dieter Rams tem sido ressignificado na última década. Ele, que sempre fora considerado um ícone da funcionalidade e do conceito de “bom design europeu”, tem tornado-se ídolo cult de jovens das mais diversas profissões, que enxergam em seu trabalho um reflexo das necessidades ultra-contemporâneas traduzidas em design.

Pois bem, sabemos que Steve Jobs e Jonathan Ive beberam da fonte de Rams para a criação e consolidação da linguagem de design da Apple. Mas Rams vai além da Apple: ele revela que suas soluções lógicas, funcionais, sintéticas e diretas são desejáveis para a contemporaneidade e, sobretudo, para uma geração que busca sentido.
E é aí onde a funcionalidade e o desejo se encontram: na busca de sentido. Segundo o Michaelis, sentido tem a ver com bom senso, com entendimento, com cabimento, lógica, maneira de ver e considerar e, por fim, com a consciência da realidade e das coisas; a própria razão. Rams, organiza o mundo em seus 10 princípios para o bom design – que não vamos apresentar neste artigo. E esta organização de mundo, que está conectada à lógica, ao essencial, ao que não é relativo, pois está conectado à noção de performance, do que é bom, do que funciona, do que faz “clique” – como meu querido professor Cláudio Portugal fala. Esse jeito de encarar o mundo e suas coisas – diante de um contexto caótico ultra-conectado – tem feito cada vez mais sentido.
Parece-me que estamos desejosos por mais funcionalidade, no sentido de querermos que os serviços funcionem, as instituições cumpram seus papeis, os artefatos sejam projetados considerando nossas reais necessidades. Desejo e funcionalidade podem caminhar juntos, conectados pela lógica entre as articulações desses conceitos. Assim, é perfeitamente inteligível que Dieter Rams tenha um Porsche 911: esse esportivo, dentro das suas características regionais e familiares, faz sentido, ou seja, tem lógica, se encaixa (faz “clique”) com a sua vida.
Em um mundo cada vez mais repleto de informações – e de opções – a simplicidade nos ajuda a escolher e, verdadeiramente, nos convida a pensar diferente. Não é a toa que a Apple arrebatou milhões de fãs ao questionar a lógica que envolvia a relação entre as pessoas e os artefatos tecnológicos. Esse é um assunto para outro post. RT